1. Contextualização
Processos de escoamento multifásicos em meios porosos possuem uma ampla aplicação em muitos campos científicos, técnicos e de engenharia, como engenharia de petróleo, água subterrânea, hidrologia de zona vadosa, remediação de contaminação e armazenamento de recursos subterrâneos. Devido às necessidades dessas áreas, enormes esforços de pesquisa e desenvolvimento foram dedicados à investigação da física do escoamento multifásico e do transporte em meios porosos e fraturados no século passado. Muitas abordagens e modelos quantitativos foram desenvolvidos e aplicados com sucesso para descrever, compreender e prever o comportamento desse fenômeno em reservatórios. Atualmente, estudos de modelagem numérica são realizados rotineiramente para investigar fenômenos físicos com o objetivo de otimizar a concepção e operação do projeto de campo, produção ou limpeza, que pode não ser possível sem a ajuda de uma ferramenta de modelagem numérica.
2. Fenômeno físico envolvido
No que tange à física associada à produção de óleo e gás, para que um fluido seja capaz de fluir em direção a um poço, deve haver uma força motriz baseada na diferença de pressão entre o reservatório e o poço para impulsioná-lo. Tomando um reservatório de óleo como exemplo, a recuperação primária é o escoamento que ocorre naturalmente em direção aos poços, mas isso não vai persistir sem a força motriz dentro do reservatório ou fornecida de fora. Para manter a produtividade do óleo ou do gás a longo prazo, métodos de recuperação secundários, como inundação de água e injeção de gás, são usados. Além disso, a recuperação terciária de petróleo tem sido rotineiramente usada por meio da injeção de produtos químicos ou energia térmica em reservatórios de petróleo para melhorar a produção ou o desempenho dos mesmos [ 1, 2 ].
Os processos físicos associados ao escoamento multifásico em meios porosos são modelados pelas mesmas leis fundamentais de conservação que as usadas em qualquer ramo das ciências e da engenharia, como a conservação de massa, momento linear e energia. Essas leis físicas em meios porosos são bem conhecidas no nível dos poros; entretanto, na prática, para a aplicação em laboratório ou campo, geralmente, o interesse é voltado apenas para o comportamento global ou na média do volume do sistema de meio poroso. Devido à complexidade das geometrias dos poros e à heterogeneidade de um sistema de meio poroso, o comportamento macroscópico não é facilmente deduzido daquele ao nível dos poros ou microescala. Para entender melhor essa relação entre as escalas do problema, a seção seguinte destaca as principais existentes e suas respectivas características.
3. Principais escalas de estudo
Os sistemas físicos a serem estudos exibem comportamentos diferentes de acordo com a escala espacial e temporal avaliadas. Portanto, para modelar o escoamento de fluidos no meio poroso, é crucial compreender as respectivas escalas espaciais e temporais do problema a ser estudado, pois, caso essas escalas sejam muito grandes, a descrição matemática pode falhar na predição do comportamento. Enquanto que, em escalas muito pequenas, a descrição matemática pode resolver detalhes supérfluos que aumentam a complexidade e o tempo computacional. Na literatura, são abordadas quatro principais escalas: a escala molecular, a micro-escala, a escala de resolução e a macro-escala, que serão detalhadas a seguir.
a) Escala molecular: esta escala é da ordem de nanômetros e os movimentos de todas as moléculas em um sistema podem ser considerados de forma determinística. Os algoritmos que calculam a dinâmica das moléculas atualizam as posições e momentos delas por meio da segunda lei de Newton. Sendo assim, o uso desta abordagem é bem amplo para diferentes físicas associadas, visto que, a física das interações moleculares é, geralmente, bem compreendida. Entretanto, esse tipo de simulação é severamente limitada, pelo nível de detalhamento ser computacionalmente proibitivo em maiores escalas
b) Microescala: ela é definida como a menor escala de comprimento na qual o modelo contínuo pode ser aplicado. Sua principal diferença em relação à escala molecular consiste em ignorar o comportamento molecular em favor de aproximações contínuas. Os estudos em microescala oferecem oportunidades de acessar informações que não estão disponíveis nas abordagens macroscópicas e melhorar a compreensão conceitual do comportamento do sistema. No caso de descrições macroscópicas incompletas, as abordagens para essa escala fornecem uma base para estudar as suposições e aproximações adotadas para a macroescala.
c) Escala de resolução: a escala de resolução é a necessária para resolver as características de um determinado escoamento e está relacionada à escala de comprimento natural de um sistema de meio poroso. O seu comprimento pode variar dependendo do problema específico estudado.
d) Macroescala: consiste na maior das três escalas, cujos detalhes das configurações do espaço entre os poros são inacessíveis para a maioria dos sistemas a serem simulados. Para a representação destas escalas maiores, as abordagens requerem uma modelagem contínua que descreve o comportamento geral baseado em um comportamento médio. Ela possui a vantagem de negligenciar muitos detalhes da microescala, que podem não afetar, de forma significativa, o transporte em grandes escalas. Sendo assim, pode ser definida como a escala de comprimento, na qual as propriedades do sistema são invariáveis em relação ao tamanho do sistema. Nela, é possível explorar a hierarquia das escalas de comprimento por meio de uma estrutura multiescala, que desenvolve estratégias para transferir informações entre as escalas citadas.
Existem também outras escalas de comprimento como a submolecular, que podem ser importantes quando os efeitos da mecânica quântica são significativos e escalas de comprimento macroscópico maiores (escala de campo ou escala regional), que também são importantes, quando a heterogeneidade em grande escala deve ser considerada [3].
4. Simulações em macro-escala
Primeiramente, os modelos macroscópicos foram formulados como leis empíricas, como a equação de Darcy e a sua formulação generalizada para escoamentos monofásicos e multifásicos [4,5,6]. Dentro dessa categoria de modelos também entram a equação de Brinkman [7,8], a equação de advecção-dispersão [9,10].
No contexto da evolução destes modelos, o de aumento de escala (upscaling) permite trazer as informações da microescala para a macroescala. Embora estes modelos possuem suas próprias particularidades, o objetivo principal é fundamentalmente o mesmo, gerar, de maneira formal, balanços diferenciais de escala macroscópica e completá-los por um processo de fechamento, também formal. Por isso, estes métodos possuem a definição da média de uma função sobre um volume de suporte (como o um volume elementar representativo na teoria de média, ou a célula unitária na teoria de homogeneização) e a construção de uma equação efetiva para tais quantidades médias [11] . A seção seguinte aborda uma breve descrição do caso bifásico, para exemplificar o modelo baseado em teoria de média com uma série de simplificações para o uso da equação de Darcy.
4.1. Escoamento bifásico
Considerando o meio poroso na escala macroscópica, o escoamento é governado por equações promediadas, cujas células computacionais contém uma fase sólida e espaços vazios, como pode ser observado na Figura 1.

Figura 1: Diagrama esquemático do meio poroso.
Esses espaços vazios são representados, na macroescala, como a porosidade conforme a equação a seguir:

Onde Vv é o volume ocupado de vazios e Vc o volume da célula. Para modelar mais de uma fase em escoamento pelos espaços vazios, temos que introduzir a noção de saturação da fase i (Si). Ela é definida pelo percentual de preenchimento da fase i dentro do espaço poroso de uma célula:

Onde Vi representa o volume ocupado pela fase i dentro do volume de espaço vazio. Considerando a fase molhante 2 e não molhante 1, são avaliados os escoamento de ambas as fases. Dito isso, as saturações satisfazem a seguinte relação:

Considerando um escoamento multifásico incompressível em um meio poroso, a equação de balanço de massa para cada fase é:

Onde ui representa a velocidade superficial e qi é um termo fonte, usado para poços de injeção ou extração. No modelo generalizado de Darcy [12], a velocidade superficial de cada fase i é calculada como:

Onde a permeabilidade efetiva da fase i (Ki) definida como a uma média estatística das condutividades do fluido em todos os canais que permitem o escoamento dentro do corpo sólido. Ela é expressa como:

K é o tensor de permeabilidade do meio poroso e kri (S2) é a permeabilidade relativa da fase i, cujo valor entre 0 e 1 depende da saturação local da fase molhante S2. Essa modelagem sugere que a presença de outro fluido reduz o espaço vazio disponível, reduzindo assim a permeabilidade local. As duas correlações de permeabilidade relativa mais amplamente utilizadas são a de Brooks e Corey [13] e Van Genuchten [14]. Outra definição que surge devido aos efeitos capilares dentro do meio poroso, é a pressão capilar. Com isso, não existe a igualdade entre os campos de pressão médios de cada fase. Ele é representada pela diferença de pressão como na equação abaixo [15]

Os valores de pc são geralmente obtidos experimentalmente e, em seguida, correlacionados em um modelo de pressão capilar. A correlação de pressão capilar elimina uma incógnita do sistema e as equações de balanço de massa ficam:

Com p1 e S2 as variáveis do sistema.
Uma forma de verificar a acurácia desta modelagem é compará-la com soluções analíticas ou semi-analíticas conhecidas na literatura. Nos métodos analíticos as soluções matemáticas exatas são obtidas sob circunstâncias muito especiais, com muitas idealizações e simplificações para descrever os problemas físicos de interesse.
5. Comparações com soluções analíticas
Apesar do progresso significativo nas técnicas de simulação numérica, as soluções analíticas, quando disponíveis, fornecem uma perspectiva mais direta sobre os fenômenos físicos associados, especialmente quando envolve os efeitos de vários parâmetros para um determinado problema.
Um exemplo desse tipo de solução é a de Buckley-Leverett para deslocamento bifásico não-capilar em um sistema homogêneo e unidimensional [16], cuja extensão para um sistema heterogêneo unidimensional composto foi feita por [17]. Na próxima seção, serão apresentados resultados comparativos com soluções analíticas para os casos unidimensionais: (i) linear homogêneo e (ii) linear heterogêneo. As deduções e os métodos de solução para essas formulações estão detalhados em [18,19].
5.1. Avaliação de parâmetros específicos : razão de viscosidade
O primeiro cenário a ser avaliado é o problema linear unidimensional com solução semi-analítica para deslocamento de dois fluidos. Esse tipo de solução possui em seu algoritmo algum processo iterativo, o que a torna semi-analítica. Nesse caso, um fluido é injetado no meio poroso saturado com óleo, conforme ilustrado na Figura 2.

Figura 2: Desenho esquemático da geometria 1D linear.
Em seguida, são adotadas hipóteses simplificadoras, sendo a primeira, considerar os fluidos incompressíveis e imiscíveis. A segunda assume que os efeitos de capilaridade são desprezíveis [18] e a última considera que a porosidade não varia no tempo (formação incompressível).
Nesse teste foi avaliada a razão de viscosidade, que representa a relação entre as viscosidades dos fluidos que estão escoando:

Portanto, para um valor de M > 1, a viscosidade do óleo é menor que a viscosidade do fluido molhante e, com M < 1, a viscosidade do óleo é superior à do fluido molhante. Além disso, as viscosidades das fases influenciam diretamente na perda de carga do sistema como mostra a equação de Darcy, onde a velocidade de deslocamento da fase é inversamente proporcional à viscosidade da respectiva fase. Para a solução analítica linear, esse parâmetro influencia diretamente no escoamento fracionário, conforme mostra a equação abaixo. Sua dedução detalhada pode ser encontrada em [18,19] e seu uso é primordial para o cálculo da frente de saturação nessas soluções,

Sendo assim, são ilustradas as curvas de saturação da fase molhante para diferentes refinos de malha nos resultados abaixo. O primeiro gráfico apresentado é para uma razão de viscosidade acima de 1.0 (M1), o segundo abaixo (M2) e o último com um viscosidade de fluido molhante próxima a de uma gás (M3), lembrando que, todos os fluidos são considerados incompressíveis.

Figura 3: Perfil de saturação nas convergências de malha para as três razões de viscosidade.
Vale destacar que, a diferença entre as duas primeiras curvas é o aumento da viscosidade do fluido de injeção, que oferece mais resistência ao escoamento, por isso, um formato de curva mais achatado no segundo gráfico (Figura 3; (b)). Enquanto que, no caso de um fluido com viscosidade próxima à do gás (Figura 3; (c)), o comportamento é o oposto, levando a pouco deslocamento de óleo e rápida produção do fluido de injeção.
5.2. Avaliação de parâmetros específicos: Heterogeneidade
No caso de domínio heterogêneo a permeabilidade é uniforme e os campos de heterogeneidade foram produzidos, pela variação da porosidade de forma crescente e decrescente. Cabe salientar que, para um caso sem gravidade, o valor da permeabilidade absoluta não influencia no escoamento, dada a forma do escoamento fracionário para o domínio j na equação abaixo:

Onde cada domínio possui propriedades do meio diferentes, porém, as propriedades dos fluidos são mantidas constantes para todos os domínios. A dedução formal da equação acima encontra-se na referência [18,19].
O campo de porosidade influencia a velocidade do escoamento de maneira diretamente proporcional, visto que, ela representa o percentual volumétrico de espaços vazios em relação ao volume total. A variação foi feita de forma a dividir o domínio em dois (j=2), cuja primeira parte possui uma porosidade menor de 0.11 [ - ] que a segunda parte de 0.25 [ - ], conforme ilustrado na Figura 4. O campo de porosidade decrescente consiste apenas em inverter a ordem das porosidades, logo, a porosidade do primeiro domínio torna-se 0.25 [ - ] e do segundo 0.11 [ - ].

Figura 4: Campo de porosidade crescente.
O resultado do perfil de saturação para diferentes refinos de malha em ambos os casos são exibidos na Figura 5 abaixo.

Figura 5: Perfil de saturação para diferentes malhas nos casos com variação no campo de porosidade.
Para o caso com porosidade crescente (Figura 5; (a)), percebe-se que, quando a curva de saturação troca de domínio (x = 50 [ m ]), ocorre um aumento na área varrida pela fase molhante, originando uma frente de saturação mais adiantada. Todavia, para um campo de porosidade decrescente (Figura 5; (b)), esse comportamento é oposto, posto que, a área varrida reduz na troca do domínio, apresentando uma frente de saturação mais atrasada em relação ao outro teste.
Face ao exposto, o escoamento em meios porosos é um fenômeno muito vasto e possui diversas formas de estudá-lo dependendo da escala e ser analisada em questão. Conforme o número de fases no sistema aumenta, maior a complexidade das equações constitutivas como a de permeabilidade e pressão capilar.
6. Referências
[1] CRAFT, B. C., & HAWKINS, M. F. (1959). Applied petroleum reservoir engineering. Prentice-Hall.
[2] AHMED, T. & MCKINNEY, P.D.; (2005). Advanced Reservoir Engineering. 10.1016/B978-0-7506-7733-2.X5000-X.
[3] MCCLURE, J.. “Microscale modeling of fluid flow in porous medium systems.” (2011).
[4] DARCY, H. Les fontaines publiques de la ville de dijon. The Public Fountains of the City of Dijon, Dalmont, Paris, France, 1856.
[5] HUBBERT, M.K.: Darcy’s law and the field equations of the flow of underground fluids. Hydrol. Sci. J 2(1), 23–59 (1957).
[6] BLUNT, M.J.: Multiphase Flow in Permeable Media. Cambridge University Press, Cambridge (2017).
[7] BRINKMAN, H.C.: A calculation of the viscous force exerted by a flowing fluid on a dense swarm of particles. Appl. Sci. Res. A1, 27–34 (1949).
[8] DURLOFSKY, L., BRADY, J.: Analysis of the brinkman equation as a model for flow in porous media. Phys. Fluids 30(11), 3329–3341 (1987). https://doi.org/10.1063/1.866465.
[9] FREEZE, R.A., CHERRY, J.A.: Groundwater, vol 7632, 604. Prentice-Hall Inc., Englewood Cliffs (1979).
[10] BEAR, J.: Modeling Phenomena of Flow and Transport in Porous Media. Springer, Cham (2018).
[11] BATTIATO, ILENIA & V, PETER & MALLEY, DANIEL & MILLER, CASS & TAKHAR, PAWAN & VALDES-PARADA, FRANCISCO & WOOD, BRIAN. (2019). Theory and Applications of Macroscale Models in Porous Media. Transport in Porous Media. 130. 10.1007/s11242-019-01282-2.
[12] M. MUSKAT, Physical Principles of Oil Production, McGraw-Hil Edition, New York, 1949.
[13] R. BROOKS, A. COREY, Hydraulic Properties of Porous Media, in: Hydrol. Pap., 1964.
[14] M.T. VAN GENUCHTEN, A closed-form equation for predicting the hydraulic conductivity of unsaturated soils1, Soil Sci. Soc. Am. J. 44 (5) (1980) 892.
[15] M.C. LEVERETT, Capillary behavior in porous solids, Trans. AIME 142 (1) (1940) 152–169
[16] BUCKLEY, S.; LEVERETT, M. Mechanism of Fluid Displacement in Sands. Transactions of the AIME, v. 146, n. 01, p. 107–116, 1942.
[17] WU, Y.-S.; PRUESS, K.; CHEN, Z. X. Buckley-leverett flow in composite porous media. SPE Advanced Technology Series, v. 1, p. 36–42, 1993.
[18] WU, Y.-S. Chapter 5 - two-phase immiscible displacement. In: WU, Y.-S. (Ed.). Multiphase Fluid Flow in Porous and Fractured Reservoirs. Boston: Gulf Professional Publishing, 2016. p. 61–87.
[19] WU, Y.-S. Chapter 6 - extensions of buckley–leverett theory. In: WU, Y.-S. (Ed.).
Multiphase Fluid Flow in Porous and Fractured Reservoirs. Boston: Gulf Professional Publishing, 2016. p. 89–126.
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